Nove trabalhadores foram resgatados em condições análogas à de trabalho escravo em três propriedades rurais, localizadas nos municípios de Corumbá e Porto Murtinho, na região do Pantanal de Mato Grosso do Sul, durante operação conjunta conduzida pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), Defensoria Pública da União (DPU), Ministério do Trabalho e Previdência, por meio da Auditoria-fiscal do Trabalho, e realizada entre os dias 11 e 22 de julho. As informações foram divulgadas durante coletiva de imprensa, que ocorreu nesta sexta-feira (22), na sede do MPT, em Campo Grande (MS), com a participação dos representantes das instituições que integraram a força-tarefa. Além das duas cidades, também foram fiscalizadas propriedades da zona rural do município de Aquidauana.
Na Fazenda Matão, localizada em Porto Murtinho, um idoso, de nacionalidade paraguaia, foi encontrado em condições de extrema vulnerabilidade. Embora diversos outros trabalhadores atuassem ali sem os devidos registros em carteira e outros direitos, como FGTS e férias, o idoso estrangeiro era o único mantido pelo empregador em um alojamento extremamente precário, dividindo espaço com animais e com agrotóxicos. Em depoimento, ele relatou estar nestas condições há mais de 20 anos, e antes da Fazenda Matão, trabalhou na Fazenda São Francisco, do mesmo proprietário.
O idoso e parte dos trabalhadores bebiam água com resíduos sólidos, e precisavam custear a própria alimentação. Caso consumissem carne fornecida pela fazenda – cuja principal atividade é a criação de bovinos – um valor era descontado da remuneração mensal, de R$ 1,5 mil. O grupo tinha acesso à cidade mais próxima, Bonito (MS), apenas uma vez ao mês, e era conduzido na carroceria de um caminhão da fazenda em uma estrada de chão, por mais de 130 quilômetros, com visibilidade severamente prejudicada pela poeira.
A exposição do idoso, por mais de duas décadas, a essas condições degradantes, o isolamento geográfico e a exploração irregular de sua força de trabalho, sem que tivesse acesso a diversos direitos trabalhistas, ou a oportunidade de promover sua regularização migratória de volta ao Paraguai, levaram a Auditoria-fiscal do Trabalho a caracterizar a situação como análoga a de escravidão, com o agravante do caráter discriminatório em relação aos demais trabalhadores da fazenda, conclusão corroborada pelo procurador do Trabalho Paulo Douglas de Moraes e pelo defensor público federal Rodrigo Esteves Rezende, que participaram da operação.
Após o flagrante, o MPT e a DPU convocaram o empregador, proprietário da Fazenda da Matão, e seus representantes jurídicos, para uma audiência administrativa, realizada na sede da Promotoria de Justiça de Bonito. Os advogados do fazendeiro recusaram o acordo proposto pelas instituições, prevendo o pagamento das verbas rescisórias ao trabalhador, calculadas pela Auditoria-fiscal do Trabalho – valores relacionados à FGTS, férias e 13º, que não foram pagos pelo empregador durante todo o vínculo – ou seja, que ele recebesse pouco mais de R$ 84 mil pelos serviços prestados na propriedade ao longo de duas décadas, além de uma indenização, no valor de R$ 75 mil, equivalente a 50 vezes o salário do trabalhador, a título de danos morais individuais, e a fim de reparar a grave lesão à sua dignidade.
Na entrada da fazenda, há uma placa indicando que a propriedade é destinatária de recursos públicos, da ordem de mais de R$ 915 mil, por meio do Fundo Constitucional do Centro-Oeste (FCO), e cuja finalidade é a aquisição de bovinos. No entendimento do MPT, tal circunstância agrava ainda mais a situação, uma vez que o acesso a recursos públicos é condicionado ao cumprimento da função social da propriedade.
“Todos nós, membros da força-tarefa, lamentamos o descaso deste patrão, que na oportunidade de firmar um acordo, encontrava-se no Canadá. Diante da possibilidade de reparação da situação de abandono e indigência a qual conscientemente submeteu o trabalhador por todo este tempo, crendo na sua impunidade, manteve-se inerte”, avalia Paulo Douglas de Moraes.
Diante da recusa em admitir uma solução pela via extrajudicial, além do trabalhador ser imediatamente afastado da propriedade, o MPT e a DPU irão pleitear, em juízo, a integral reparação às lesões materiais e morais suportadas pelo trabalhador por mais de 20 anos.
Acordo com os empregadores garante reparação às vítimas
Já nas outras duas propriedades rurais, ambas localizadas em Corumbá, a conduta dos empregadores foi diferente. Os proprietários das fazendas se comprometeram, ao assinarem Termo de Ajuste de Conduta (TAC), a pagar cerca de R$ 22,5 mil para cada um dos oito trabalhadores flagrados em condições degradantes, totalizando, entre verbas rescisórias e danos morais individuais, mais de R$ 180 mil, além de mais R$ 80 mil a título de dano moral coletivo a ser revertido na aquisição de bens para o aparelhamento da Polícia Militar Ambiental (PMA) de Mato Grosso do Sul.
Os Termos de Ajuste de Conduta, para além da reparação financeira, visam corrigir as irregularidades identificadas pela Auditoria-fiscal do Trabalho no decorrer da operação de resgate e, sobretudo, à proteção de futuros trabalhadores contratados para a execução dos serviços rurais.
Trabalho escravo contemporâneo
Não é apenas a privação de liberdade que torna o trabalho análogo ao de escravo, mas sim, a ausência de dignidade. Estes nove trabalhadores foram flagrados sob parte dos quatro elementos que caracterizam o trabalho análogo ao de escravo, conforme o artigo 149 do Código Penal: condições degradantes de trabalho, incompatíveis com a dignidade humana, caracterizadas pela violação de direitos fundamentais e que coloquem em risco a saúde e a vida do trabalhador; jornada exaustiva (em que o trabalhador é submetido a esforço excessivo ou sobrecarga de trabalho que acarreta a danos à sua saúde ou risco de vida); trabalho forçado (manter a pessoa no serviço através de fraudes, isolamento geográfico, ameaças e violências físicas e psicológicas) e servidão por dívida (fazer o trabalhador contrair ilegalmente um débito e prendê-lo a ele). Os elementos podem vir juntos ou isoladamente.
Uma das vítimas resgatadas pela força-tarefa durante a operação, um homem de 27 anos, atuava como cozinheiro há quatro semanas em uma das fazendas. Contratado em Corumbá por um intermediador, ouviu dele que a remuneração seria de R$ 50 por dia, porém, ele ainda não havia recebido nenhum valor. Por isso, foi impelido a pedir um vale, de R$ 400, com intuito de comprar mantimentos básicos para a sua permanência na propriedade, como sabonete, papel higiênico e sabão.
Ele e mais dois colegas dormiam em um barraco de lona, sem acesso à energia elétrica, e usavam o mato para fazer as necessidades fisiológicas e tomar banho. A água para consumo vinha de um poço artesiano da fazenda, ficava armazenada em um tambor de diesel e estava completamente turva no momento do flagrante. O trabalhador relatou, em depoimento, que inclusive já havia passado mal por beber a água. Ele mesmo manipulou “plantas da fazenda” na tentativa de se recuperar.
A jornada começava antes mesmo do raiar do dia, às 4 horas da manhã, e só terminava por volta das 4 da tarde. No caso dele, sequer havia direito à folga: o serviço de cozinheiro era realizado de domingo a domingo.
Um colega de trabalho, de 46 anos, fora contratado diretamente pelo proprietário da fazenda, há cerca de três meses, para construir cercas, mangueiro para bezerros e salgadeira para o gado. Ele retirava e fazia os postes a partir de madeira plantada na própria fazenda, utilizando uma motosserra sem nunca ter passado por qualquer tipo de treinamento para operar a ferramenta, ou receber Equipamento de Proteção Individual (EPI) para se resguardar de eventuais acidentes durante a execução do serviço.
Na outra propriedade rural fiscalizada, era uma mulher quem atuava como cozinheira, sem direito à descanso semanal, e os demais trabalhadores também faziam a construção de cercas no momento do flagrante. Um deles afirmou ter que consciência de que as condições de trabalho eram inadequadas, mas disse não ter outra opção, a não ser submeter a elas, se quisesse ter dinheiro para sustentar a família.
“A realidade do trabalho escravo contemporâneo, ainda arraigada no Brasil, e mais presente em determinadas regiões, reforça a necessidade da atuação multidisciplinar e pluri-institucional do Estado, como ocorrido nesta exitosa operação de combate a uma prática nefasta de exploração do labor de vulneráveis, e tão nociva aos valores do trabalho e à dignidade da pessoa humana”, avalia o defensor público Rodrigo Rezende.
Trabalho escravo contemporâneo em Mato Grosso do Sul
O número de vítimas do trabalho análogo ao de escravo em Mato Grosso do Sul no ano de 2022 já é quase equivalente ao registrado ao longo de 2021. Até o dia 21 de julho, 72 trabalhadores foram resgatados, conforme relatório da Auditoria-fiscal do Trabalho em Mato Grosso do Sul, órgão vinculado ao Ministério do Trabalho e Previdência, do governo federal. Durante todo o ano passado, 81 trabalhadores foram flagrados laborando em condições degradantes.
Neste ano, até 21 de julho, ainda conforme o relatório da Auditoria-fiscal do Trabalho, foram efetivadas oito ações fiscais, em propriedades rurais localizadas nos municípios de Porto Murtinho, Bela Vista, Ponta Porã, Corumbá e Naviraí. No momento destes flagrantes, os trabalhadores atuavam na aplicação de herbicidas em lavouras, construção de cercas, carregamento de eucalipto, roçada de pasto, plantio de cana-de-açúcar e criação de bovinos.
Em 2021, foram realizadas 11 ações fiscais com resgate de trabalhadores, em Campo Grande, Sidrolândia, Porto Murtinho, Anastácio, Antônio João, Ponta Porã e Corumbá. As vítimas atuavam no cultivo de soja, extração de madeira, criação de bovinos, construção de cercas para confinamento de gado e em uma obra da construção civil, na zona urbana.
Denuncie
Todo cidadão que presenciar pessoas atuando de formas que caracterizem o trabalho análogo ao de escravo (em condições degradantes de trabalho; sob jornadas exaustivas; trabalho forçado ou por servidão por dívida) pode denunciar ao MPT.
Basta acessar o site: www.prt24.mpt.mp.br/servicos/denuncias
Ou pelo MPT Pardal, aplicativo do MPT voltado para denúncias.
Fonte: Ministério Público do Trabalho | Procuradoria Regional do Trabalho da 24ª Região