O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pagou R$ 7 bilhões em emendas do orçamento secreto deixadas pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) sem respeitar a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que declarou o esquema inconstitucional e determinou transparência sobre os parlamentares que apadrinharam os recursos.
A Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República afirmou que o governo cumpre a decisão do STF e que a Corte não proibiu o pagamento das emendas herdadas da gestão anterior. O Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional, que liderou os repasses, disse que obras ficariam paralisadas se o dinheiro não fosse liberado. A pasta enviou um painel com informações incompletas sobre as transferências.
O orçamento secreto, revelado pelo Estadão, foi usado pelo governo Bolsonaro para repassar recursos em troca de apoio político no Congresso, sem dar transparência para os verdadeiros beneficiados pelo mecanismo. Houve compras com suspeitas de superfaturamento e investigações oficiais indicando corrupção e lavagem de dinheiro.
O presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva (PT), durante a cerimônia de assinatura de contrato entre o Ministério da Justiça e o BNDES, no dia 17 de junho, no Palácio do Planalto. Foto: Wilton Junior/Estadão© Fornecido por Estadão
Em dezembro de 2022, o Supremo declarou o orçamento secreto inconstitucional. Na última semana, o ministro Flávio Dino, do STF, publicou uma decisão afirmando que o governo Lula e o Congresso não comprovaram, “cabalmente”, o cumprimento da decisão. O Tribunal de Contas da União (TCU) teve a mesma conclusão ao analisar as contas presidenciais de 2023. A falta de transparência sobre os parlamentares beneficiados e quais critérios são adotados para a divisão dos recursos são os principais questionamentos, que ainda continuam sem respostas no governo Lula.
O dinheiro liberado atende, de forma secreta, parlamentares com recursos para asfalto, compra de tratores, kits de robótica, consultas de saúde, exames e outras obras e equipamentos nos redutos eleitorais dos congressistas. Bolsonaro deixou de pagar R$ 15,5 bilhões do orçamento secreto que haviam sido negociados com o Congresso durante o governo passado. Até momento, Lula pagou R$ 7 bilhões desse montante.
O Supremo não proibiu que os recursos que já haviam sido liberados (empenhados, no jargão técnico) fossem pagos, mas determinou que fosse dada total transparência em 90 dias com o nome dos padrinhos, para onde foi o dinheiro e para que foi destinado, além de retirar qualquer vinculação com indicação parlamentar e devolver o controle total para os ministérios. O governo Lula, porém, seguiu pagando as emendas secretas sem cumprir esses requisitos. Além disso, deu aval para o aumento de outros tipos de emendas que repetem a mesma sistemática, como a emenda Pix e as emendas de comissão.
“A decisão do STF não foi cumprida exatamente em seus aspectos principais. O pagamento de R$ 7 bilhões em 2023 e 2024, sem transparência, continuando a favorecer alguns parlamentares em detrimento de outros, deu continuidade ao ‘tratoraço’ e desvirtuou a decisão do STF”, afirma o secretário-geral da Associação Contas Abertas, Gil Castello Branco, uma das instituições que ingressou no Supremo questionando a continuidade do esquema.
De todo o valor pago em 2023 e 2024, R$ 4,1 bilhões saíram do Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional, R$ 853,6 milhões da Agricultura, R$ 555 milhões da Saúde e R$ 486 milhões do Ministério do Desenvolvimento Social – outros órgãos pagaram o restante. O Ministério do Desenvolvimento Regional foi por onde passou grande parte do orçamento secreto. Dentro dele, está a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), controlada pelo Centrão.
“Há muitos riscos de corrupção com essa indicação sem a sociedade saber quem é o solicitante, quem é o beneficiário ou os dois. Os recursos que ainda não haviam sido liberados também precisam respeitar o trâmite que o Supremo impôs em 2022. A decisão não é só para registro histórico”, diz o gerente de Pesquisa da Transparência Internacional no Brasil, Guilherme France. A instituição também é autora do questionamento que originou a decisão do ministro Flávio Dino.
O governo Lula não só pagou os recursos de obras que estavam em andamento mas também deu aval para projetos que não haviam sido executados na gestão Bolsonaro. Ou seja, tomou a decisão de dar prosseguimento ao orçamento secreto. Em janeiro de 2023, o petista assinou um decreto bloqueando todos os repasses acima de R$ 1 milhão de obras e projetos que ainda não haviam sido executados, mas os recursos foram liberados depois.
Após a decisão do STF, em dezembro de 2022, a Advocacia-Geral da União (AGU) determinou que todos os órgãos do governo federal publicassem os dados referentes aos serviços, obras e compras realizadas com verbas do orçamento, assim como a identificação dos parlamentares que apadrinharam as emendas “de modo acessível, claro e fidedigno.” Agora, o ministro Flávio Dino marcou uma uma audiência de conciliação para tratar do cumprimento da decisão no dia 1º de agosto.
“O dever que o governo tem de executar a despesa pública não exclui o dever de transparência. Ele tem que executar sim, mas com transparência. As verbas do orçamento secreto que ficaram para ser pagas têm que ser rastreáveis. Se não falarem onde essas verbas foram gastas e quem indicou, a decisão do STF está sendo violada”, afirma Caio Gama Mascarenhas, procurador do Estado de Mato Grosso do Sul e pesquisador em direito financeiro pela Universidade de São Paulo (USP).
Governo diz que cumpre decisão e que transparência cabe aos ministérios
A Secretaria de Relações Institucional da Presidência da República afirmou que o governo Lula cumpre “exatamente” o que foi estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF), “encerrando uma tradição de desrespeito e de conflito, estabelecida pelo governo anterior.” A pasta, que assessora o Planalto na negociação com o Congresso, disse que a execução e a transparência são de responsabilidade dos ministérios.
“Os pagamentos na modalidade RP-9 (orçamento secreto) se referem a restos a pagar, ou seja, a montantes que já haviam sido analisados e liberados para empenho pelos ministérios responsáveis”, afirmou a secretaria. “O STF estabelece que as emendas de relator, cuja execução já havia sido iniciada no momento da decisão, poderiam ter continuidade, desde que seguissem os critérios e diretrizes das políticas públicas definidas pelos Ministérios”, diz a nota da pasta.
O Supremo também determinou a divulgação do nome de todos os parlamentares atendidos. Questionados pelo Estadão, nenhum órgão do Executivo federal comentou diretamente a decisão do ministro Flávio Dino e o relatório do Tribunal de Contas da União que apontam descumprimento da determinação de acabar com o orçamento secreto.
O Ministério do Desenvolvimento Regional afirmou que a execução dos recursos negociados em anos anteriores é realizada visando exclusivamente o interesse público. “A não execução desses pagamentos resultaria na paralisação de diversas obras em andamento, causando prejuízos à população, às empresas contratadas e desperdício de recursos públicos já investidos”, disse a pasta, em resposta à reportagem.
Questionado sobre a transparência dos recursos, o órgão encaminhou um painel que está público na internet com informações sobre R$ 8,1 bilhões em despesas empenhadas (comprometidas no Orçamento), dos quais R$ 2,9 bilhões foram efetivamente pagos. A fatura do orçamento secreto na pasta, no entanto, é maior. Foram R$ 14,8 bilhões empenhados e R$ 9,5 bilhões pagos desde 2020. Só no governo Lula, foram R$ 4,1 bilhões repassados. O ministério disse que o painel será atualizado no dia 5 de julho.
Após a publicação da reportagem, o Ministério da Saúde afirmou que as emendas herdadas do governo anterior passaram por reavaliação e foram liberadas após a pasta verificar ausência de qualquer indício de irregularidade e a convergência com os programas estratégicos do órgão.
“Constatada a ausência de indício de irregularidade e a referida convergência, os órgãos foram autorizados a dar sequência aos procedimentos ordinários para a realização dos pagamentos, observada a disponibilidade orçamentária e as demais normas e procedimentos administrativos aplicáveis”, disse a pasta.
O Ministério da Saúde encaminhou um painel que divulga as indicações feitas pelo Congresso. As emendas do orçamento secreto, no entanto, que totalizaram R$ 23 bilhões, não trazem o nome dos parlamentares que apadrinharam os recursos, mas apenas a identificação do relator-geral do Orçamento, o que foi proibido pelo Supremo. As outras pastas envolvidas não se posicionaram.
Como o governo Lula repaginou o orçamento secreto
Em dezembro de 2022, o Supremo declarou o orçamento secreto inconstitucional e determinou que o governo e o Congresso dessem transparência sobre todos os parlamentares beneficiados e para onde foi o dinheiro, além de interromper o mecanismo. Bolsonaro deixou de pagar R$ 15,5 bilhões do orçamento secreto que haviam sido negociados com o Congresso durante o governo passado.
Conforme o Estadão revelou, Lula mandou pagar R$ 9 bilhões do orçamento secreto herdado de Bolsonaro para seguir atendendo o Congresso. Durante a campanha eleitoral, o petista classificou o mecanismo como uma “excrescência”, além de tachar o Congresso como o “pior da história” em função das emendas secretas. Em um ano e meio de governo, Lula pagou R$ 7 bilhões dos recursos que ficam “pendurados”.
No STF, Flávio Dino afirmou que o governo e o Congresso têm liberdade para definir o destino do dinheiro público, mas ponderou que isso “não exclui o dever de observância aos princípios e procedimentos constantes da Constituição Federal – entre os quais os postulados da publicidade e da eficiência”.
O TCU analisou as contas presidenciais de 2023 e também concluiu que a recomendação de acabar com o orçamento secreto não foi cumprida, ao vistoriar a plataforma do governo destinada ao rastreamento do dinheiro. Além da falta de transparência, a Corte de Contas alertou que as emendas trazem “consequências deletérias à consecução de políticas públicas estruturantes, que via de regra transcendem questões locais.”
“Para as transferências que não são realizadas de Fundo a Fundo, é possível identificar a unidade a federação e o município em que os recursos foram empregues, o objeto e o beneficiário dos repasses, além de algumas outras informações. Entretanto, não é disponibilizada a identificação do parlamentar ou da pessoa física ou jurídica que realizou a indicação para alocação dos recursos, o que, conforme descrito, é ponto fundamental em relação às emendas RP 9 (orçamento secreto). Para as transferências Fundo a Fundo não é possível sequer identificar quais são oriundas de emendas RP 9?, diz o relatório da Corte de Contas.
Fonte: Estadão Conteúdo