“Quarenta acres e uma mula”. A ordem emitida nos Estados Unidos pelo general da União William Sherman, em janeiro de 1865, se insere entre as primeiras tentativas de reparação dirigida a famílias negras escravizadas naquele país. A Guerra da Secessão se aproximava do fim e a intenção de Sherman, ao distribuir terras confiscadas dos Confederados, estava em sintonia com inciativas projetadas no breve período da Reconstrução, quando se discutiu meios de garantir direitos iguais à população negra.
Com vida curta, a proposta acabou rejeitada pelo presidente Andrew Johnson, sucessor de Abraham Lincoln, assassinado em abril daquele ano. E as terras voltaram para as mãos dos antigos proprietários escravagistas. Passados 155 anos e uma longa história de segregação, ainda hoje os conflitos raciais permeiam a sociedade estadunidense.
Já o Brasil, que carrega a imagem negativa de ser o último país das Américas a abolir a escravidão, promoveu a queima de arquivos com registros do período com a intenção de recomeçar a história. A medida, ordenada por Rui Barbosa e noticiada pelos jornais da época como “belo exemplo”, ainda gera polêmica.
Há quem aponte a motivação do então ministro da Fazenda como de cunho fiscal, que visava proteger o Estado de arcar com indenizações para escravagistas. A ação, porém, ao mesmo tempo que inviabilizou qualquer possibilidade de exigência de indenização pelos libertos, eliminou registros históricos que comprometeram até mesmo a construção da identidade dos antigos escravos, fato que ainda hoje reflete em seus descendentes.
O debate sobre ações afirmativas chegou ao Brasil somente nas últimas décadas do século passado e medidas começaram a se concretizar neste século, com maior força, após 2010, quando foi promulgado o Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288). Ao longo da história, o país se agarrou à ideia de uma democracia racial que contribuiu para escamotear o racismo estrutural que perdura na sociedade brasileira.
Para o desembargador Roger Raupp Rios, do Tribunal Regional Federal da 4a Região (TRF4), a resistência às ações afirmativas no Brasil está diretamente relacionada a essa visão. “Num certo momento da história, por volta dos anos 50, se achava que o Brasil, diferentemente de qualquer outro país do mundo, era um lugar onde não existia nenhum tipo de preconceito, bem como discriminação racial.”
Estudioso e autor de vários livros sobre o direito das minorias, ele ressalta que a construção do “mito da democracia racial” chamou atenção de muitos países e de organizações internacionais que enviaram, na década de 50 do século passado, grupos de estudos para conhecer e estudar o Brasil e ver “a maravilha que seria uma sociedade sem preconceito racial”. “Infelizmente, constataram a triste realidade de uma grande discriminação racial, não só no campo do ensino, mas do trabalho e no próprio cotidiano.”
Raupp cita o “mito”, ainda presente no Brasil, como um dos fatores responsáveis pela resistência à implementação de ações afirmativas. “Essa é uma barreira de autopercepção que nós brasileiros, a sociedade brasileira, as instituições públicas e privadas, estão caminhando para superar e tomar consciência da realidade.”
Ele esclarece que as ações afirmativas são medidas conscientes da existência de uma situação de discriminação e que buscam quebrar os mecanismos, perceptíveis e imperceptíveis, que existem nas práticas das instituições. “O objetivo é que essa e discriminação, que persiste e se perpetua, cesse ou, pelo menos, vá diminuindo.”
O desembargador enfatiza que é fundamental não confundir ação afirmativa com discriminação invertida ou discriminação benéfica, porque é exatamente o contrário. “Não se trata de discriminação. São medidas para interromper os mecanismos que mantém os grupos discriminados excluídos das chances de trabalho, de emprego e renda e de aprendizado, no caso dos estágios.”
Barreiras
As ações afirmativas surgiram a partir da constatação que a eliminação de situações de discriminação explícitas era insuficiente. Raupp cita o exemplo dos Estados Unidos, onde pessoas negras eram proibidas de frequentar universidades ou ocupar determinados postos de trabalho. “Dado o primeiro passo, que consistiu na derrubada dessas barreiras, o que se verificou posteriormente, é que mesmo sem essas restrições de fato, as pessoas negras continuavam não entrando não ocupando espaços. Não por falta de qualificação, mas por uma série de mecanismo que vem de uma história de vida com muitas barreiras que são colocadas nos contextos da sociedade.”
A partir dessa constatação, observa, ficou clara a necessidade de se tomar medidas conscientes para enfrentamento da dificuldade de acesso, levando ao surgimento das ações afirmativas. “Se ações afirmativas são para evitar a discriminação, o passo seguinte é identificar a quem ela se destina. Quem são as pessoas e grupos sociais que são discriminados na nossa sociedade?”
A próxima etapa é a identificação da pessoa discriminada, o que ocorre a partir da autodeclaração. “É quando ela diz que se considera ou se percebe como uma pessoa negra. O objetivo da política pública – e é isso que importa – é alcançar as pessoas que sofrem discriminação”, destaca o desembargador.
Raupp avalia que as medidas de ação afirmativa têm avançado em instituições públicas e privadas e cita as universidades como o primeiro exemplo. Ele lembra que tribunais já adotam cotas em concursos públicos para magistrados, servidores e estagiários. “Tudo que muda, que mexe com a realidade para enfrentar uma mentalidade e costumes arraigados, naturalmente, vai enfrentar resistência. Não é diferente no Brasil. O importante é perseguir o objetivo justo, que é construir uma sociedade decente, realmente sem discriminação racial.”
Agência CNJ de Notícias.