Jovens, de origem indígena e do gênero masculino. Os traços predominantes de trabalhadores resgatados em condições análogas à de escravo no Mato Grosso do Sul se repetiram na última ação coordenada por representantes do Ministério Público do Trabalho (MPT), da Superintendência Regional do Trabalho e da Polícia Militar Ambiental. Onze pessoas, sendo quatro com idade inferior a 18 anos, foram flagradas em condições degradantes no curso de inspeção realizada em uma fazenda no município de Antônio João, próximo à fronteira do estado com o Paraguai.
Sem acesso a água potável, os trabalhadores tinham que beber, tomar banho e lavar suas roupas em um córrego. Sem nem mesmo tarimbas, dormiam no chão. A alimentação, custeada pelos trabalhadores, era composta por um pouco de arroz e como mistura uma sardinha ou animais silvestres caçados pelos próprios indígenas.
A operação conjunta de resgate teve início no último dia 18 e encontra-se em fase de apuração dos valores correspondentes à prestação dos serviços. O empregador deverá efetuar o registro em carteira dos trabalhadores. Eles têm ainda direito a receber o auxílio Seguro-Desemprego Trabalhador Resgatado – são três parcelas, cada uma no valor de um salário-mínimo. Para isso, é necessário somente o fornecimento do número do CPF por parte do empregado.
O empregador também foi notificado para que compareça a uma audiência administrativa, em que será apresentado pelo auditores-fiscais o cálculo das verbas rescisórias e a quantia referente ao recolhimento das contribuições previdenciárias e do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). De modo paralelo, ele ainda deverá arcar com o pagamento de multas decorrentes da lavratura de autos de infração, bem como de eventuais indenizações a título de danos morais individual e coletivo.
Além das providências cabíveis para responsabilização trabalhista e garantia dos direitos das vítimas, outras medidas serão tomadas pelo MPT para compensar os trabalhadores pelos danos morais gravíssimos por eles sofridos, sem prejuízo do encaminhamento dos fatos ao Ministério Público Federal para apuração na esfera criminal.
Precarização do labor
A maioria dos indígenas contratados para a atividade de catação de pedras – que consistia na retirada de pedras e de vegetação indesejada – residia, antes do aliciamento, na Aldeia Campestre, localizada às margens da rodovia MS-384, ainda no perímetro compreendido pelo município de Antônio João. Em depoimentos coletados durante a diligência, eles relataram que a jornada de trabalho era de segunda-feira a sábado, das 6h às 17h, e que receberiam R$ 65 por dia, valor do qual eram descontadas despesas com alimentação. Todos laboravam sem registro em carteira – boa parte sequer possui certidão de nascimento. Um deles estava, desde fevereiro deste ano, na fazenda que ocupa 4 mil hectares.
Parte dos trabalhadores vivia em barracos de lona plástica improvisados no meio da mata, que não os protegia de intempéries como chuva e dos animais peçonhentos. Outros dormiam em camas improvisadas – colchões velhos e sujos, colocados sobre o chão e toras de madeira, montadas em um galpão construído perto da sede. A varanda desse espaço também era utilizada como “alojamento” pelos indígenas, onde dormiam no chão.
Ao grupo não eram oferecidos locais apropriados para guarda, conservação e preparo de alimentos – comiam em um canto qualquer, nem água potável, instalações sanitárias, equipamentos de proteção individual ou coletiva e materiais de primeiros socorros. Como consequência, eles tomavam banho em um riacho próximo da sede da propriedade rural, sem nenhuma privacidade. E faziam as necessidades fisiológicas no mato, a céu aberto.
De acordo com a procurador do MPT-MS Paulo Douglas Almeida de Moraes, reduzir um trabalhador à condição análoga à de escravo representa grave violação do princípio da dignidade humana, em razão do descumprimento de direitos fundamentais, em especial dos referentes à higiene, saúde, segurança, moradia, repouso e outros relacionados a direitos da personalidade. “Fatos como estes são inadmissíveis e, por isso, devem ser severamente punidos”, sublinhou Moraes.
Panorama
Em Mato Grosso do Sul, a escravidão moderna se concentra no meio rural e pode ser reconhecida quando constatada a submissão a trabalhos forçados, a jornadas exaustivas, a condições degradantes de trabalho ou a servidões por dívida.
A perspectiva geográfica do trabalho escravo no estado aponta que tanto os locais de naturalidade quanto os de residência dos trabalhadores resgatados são marcados por desigualdades de desenvolvimento humano, renda e iniquidades de base identitária. São espaços que costumam se caracterizar pela falta de oportunidades de emprego e renda. Quando surgem, as vagas, geralmente informais, ofertam salários baixos e exigem pouca ou nenhuma qualificação profissional.
Segundo a última atualização do Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas, ferramenta on-line e gratuita desenvolvida pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) e pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 1995 a 2020 quase 2,9 mil pessoas foram resgatadas em condições análogas à de escravo em Mato Grosso do Sul, uma média de 109 resgatados por ano, todos na zona rural.
Desses, 56% declararam-se como indígenas, 20% como brancos, 15% como pardos, 6% amarelas e 3% como pretos. Quanto ao grau de escolaridade, 62% eram analfabetos. Predomina entre essas pessoas o gênero masculino, a maior parte delas na faixa etária de 18 a 24 anos. No entanto, cerca de 2,5% são crianças ou adolescentes, o que evidencia também algumas das piores formas de trabalho infantil.
Entre os setores econômicos mais frequentemente envolvidos nos resgates, destacam-se: cultivo de cana-de-açúcar (2.003 trabalhadores), produção florestal (237) e criação de bovinos (193), informações que permitem identificar riscos específicos existentes em determinadas atividades e cadeias produtivas.
Denúncias sobre trabalho escravo podem ser feitas por meio dos seguintes canais: Portal do MPT-MS, App MPT Pardal (Android e IoS), Sistema Ipê ou Disque 100 e 180.
Assessoria.