O Ministério Público do Trabalho em Mato Grosso do Sul (MPT-MS) expediu uma recomendação à empresa ACP Bioenergia Ltda. para que deixe de realizar pulverizações de agrotóxicos, tanto por via aérea como terrestre, a uma distância inferior a 500 metros – ou maior prevista em lei – de povoações como o Reassentamento Santana, cidades, vilas, bairros e mananciais de captação de água para abastecimento de população, e menor que 250 metros de mananciais de água, moradias isoladas e agrupamentos de animais, a fim de proteger trabalhadores rurais reassentados.
Aeronave durante pulverização de agrotóxicos na Fazenda Santa Lourdes. Foto: Perícia do MPT
Conforme o documento, a empresa tem até 30 dias, contados a partir da data de recebimento, para adequar suas condutas aos parâmetros constitucionais e legais estabelecidos sobre a regulação de agrotóxicos no Brasil. Em Mato Grosso do Sul, a ACP Bioenergia tem polos instalados nos municípios de Brasilândia, Nova Alvorada do Sul e Rio Brilhante.
A medida integra um conjunto de providências adotadas no curso de investigação conduzida pelo MPT-MS. Segundo laudo finalizado em dezembro de 2023, pelo perito em Engenharia de Segurança do Trabalho Sandoval Lopes de Souza, os trabalhadores rurais do Reassentamento Santana, no município de Brasilândia, quando do exercício de suas atividades laborais, estão indiretamente expostos a agrotóxicos, aditivos, adjuvantes e produtos afins utilizados nas lavouras de cana-de-açúcar da ACP Bioenergia e aplicados por via aérea e/ou terrestre.
Essa conclusão se deu após inspeção realizada na Fazenda Santa Lourdes, situada em área limítrofe com o reassentamento e arrendada pela empresa, onde a perícia constatou ilegalidades na execução dos serviços de pulverização aérea para aplicação de agrotóxicos e outros produtos no canavial da empresa. A análise esteve amparada em entrevistas com trabalhadores, registros audiovisual e fotográfico, além do exame de documentos.
Ainda de acordo com outro laudo pericial do MPT-MS, produzido em dezembro de 2024, o MPT-MS verificou que os empregados da ACP Bioenergia também estão expostos ao uso inadequado de agrotóxicos. Entre as irregularidades, observou-se por exemplo que o motorista da empresa, responsável pelo preparo e carregamento da calda (uma mistura de agrotóxicos, aditivos, adjuvantes e produtos afins) na aeronave, não dispõe de local para banho e armário individual. Já um trabalhador que manipula agrotóxicos não recebeu treinamento específico para essa atividade. Além disso, as áreas onde o agrotóxico é pulverizado não possuem sinalização.
Conforme a perícia, a ACP Bioenergia não cumpre diversas obrigações relativas às normas de segurança e saúde no trabalho, devendo estabelecer condições mínimas para a implementação de medidas preventivas capazes de garantir tanto a proteção dos seus profissionais quanto da comunidade de trabalhadores rurais que habita o Reassentamento Santana, onde há residências instaladas em proximidades de até 28 metros de distância da lavoura de cana-de-açúcar da empresa.
Diante das situações constatadas, o MPT-MS buscará a regularização das atividades da empresa, seja por meio de conciliação ou do ajuizamento de ação, com vistas à defesa dos empregados diretos, terceirizados, prestadores de serviços e trabalhadores rurais.
Comunidade de trabalhadores rurais adjacente à pulverização
Criado em 1998, o Reassentamento Santana – ainda conhecido como Santa Emília – possui uma área de quase 800 hectares, que é resultado da aquisição de terras por parte da Companhia Energética de São Paulo (CESP) para mitigar os impactos negativos causados pelo enchimento do reservatório da Usina Hidrelétrica Sérgio Motta, inaugurada em 1999. A área foi então repassada ao município de Brasilândia, juntamente com uma lista de 110 pessoas que seriam beneficiadas pela implantação do reassentamento. Atualmente, residem no local em torno de 60 famílias de trabalhadores rurais, que desenvolvem ocupações econômicas como agricultura, pecuária de leite e corte, apicultura e piscicultura em tanques escavados.
Respaldo de normas internacionais
A recomendação tem como base os princípios da prevenção e da precaução, presentes na Constituição Federal e que sinalizam que as empresas devem adotar medidas visando resguardar os seus trabalhadores e a sociedade de possíveis danos relacionados à saúde e à segurança do trabalho.
Além disso, o documento faz referência às Convenções nº 155 e nº 170, ambas da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e ratificadas pelo Brasil, que definem critérios para a utilização de produtos químicos no ambiente laboral e dispõem sobre a prevenção de acidentes e doenças ocupacionais.
O texto ainda lembra que a Resolução nº 22/2022, aprovada pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos, propõe distâncias maiores para a pulverização aérea de agrotóxicos e reforça o direito de informação prévia assim como de mecanismos para facilitar o acesso à Justiça pelas populações potencialmente afetadas.
Em outra parte, a recomendação enfatiza que estudos promovidos pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) apontaram que, mesmo que sejam seguidas todas as instruções relativas à calibração, temperatura e ventos ideais, apenas 32% dos agrotóxicos pulverizados chegarão às plantas, outros 49% atingem o solo e 19% são propagados pelo ar, alcançando áreas próximas da aplicação. Somado a isso, as próprias fabricantes de agrotóxicos admitem que a deriva no momento da pulverização pode atingir 2 mil metros, impactando cultivos sensíveis, pessoas e animais dentro desse perímetro.
Desde 2019, acrescenta o documento, o estado do Ceará proíbe a pulverização aérea de agrotóxicos em seu território. Esse embargo é regulamentado pela Lei nº 16.820, declarada válida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 6.137 proposta em face da referida norma. Em seu voto, a ministra Carmem Lúcia sustentou que estudos científicos demonstram os riscos dos agrotóxicos para a saúde humana e para o meio ambiente, sobretudo na utilização da pulverização aérea, onde se verifica que a “deriva técnica” pode espalhar-se por até 32 quilômetros da área-alvo de aplicação.
No período de 2014 a 2023, foram registradas na base de dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) 886 ocorrências de intoxicação causada por agrotóxicos de uso agrícola nos municípios do Mato Grosso do Sul, de acordo com levantamento feito pela Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente, do Ministério da Saúde.