Um vírus ancestral está relacionado às mortes de pacientes graves infectados pelo novo coronavírus, de acordo com um estudo publicado na sexta-feira (21) pela Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz).
Conduzido de março a dezembro de 2020, o estudo acompanhou 25 pessoas que desenvolveram sintomas graves de covid-19 e constatou nelas uma presença maior do material genético do vírus HERV-K no trato respiratório.
HERV-K é a sigla em inglês para Retrovírus Endógeno Humano da Família K. Não se trata de um novo vírus circulando entre a humanidade, e sim de um microorganismo que, em algum momento da escala evolutiva, infectou nossos ancestrais primatas e deixou parte de seu código genético em nossos cromossomos.
Mesmo com o passar dos milênios, as informações do genoma do HERV-K continuaram presentes no DNA humano, silenciosas, e sem causar nenhum problema, já que foram incorporadas integralmente pelo organismo.
O que a Fiocruz constatou é que o coronavírus Sars-CoV-2 reativa parte desse código, formando um “quase vírus”, que é interpretado pelo corpo como um invasor.
Com a suposta invasão, o sistema imunológico sente que está sendo atacado por dois vírus distintos, e não apenas por um, e gera uma resposta imunológica exagerada, que é o mecanismo que causa a morte de pacientes com covid.
A descoberta — inédita — é um passo importante para entender melhor a atuação do novo coronavírus no corpo, e, futuramente, talvez desenvolver um tratamento para a doença.
O estudo está na fase de preprint — ou seja, ainda não foi revisado por pares. Sua hipótese central, no entanto, já foi comprovada por meio de experimentos, e são necessárias apenas análises complementares para esclarecer questões que seguem em aberto.
O coronavírus como gatilho
A Fundação Oswaldo Cruz constatou que o coronavírus Sars-CoV-2 é um gatilho para a ativação das informações genéticas do HERV-K no corpo.
Os pesquisadores acompanharam 25 casos graves de covid-19 entre março e dezembro de 2020. A idade média deles era de 57 anos.
Pacientes gravíssimos tinham em seus corpos um índice de traços do HERV-K 50% maior do que aqueles que estavam em uma situação menos crítica e 80% maior do que em casos leves e em pessoas saudáveis.
A reativação das informações genéticas do HERV-K faz com que o corpo entenda que há mais de um invasor no organismo. O corpo, lutando contra a infecção, desencadeia um processo inflamatório intenso.
Nos casos graves, essa reação preenche os alvéolos pulmonares com líquidos, cenário que caracteriza a pneumonia.
Os alvéolos pulmonares são estruturas que levam o oxigênio ao sangue. Com sua obstrução, a oxigenação sanguínea diminui, causando o quadro de insuficiência respiratória que pode levar o paciente à morte.
A AÇÃO DO CORONAVÍRUS NO PULMÃO
Além de acompanhar casos reais de pacientes, o estudo também verificou a presença de HERV-K em testes de contaminação em laboratório, dando ainda mais evidências para a comprovação da hipótese.
A descoberta da Fiocruz foi feita quase que por acidente. Originalmente, tratava-se apenas de uma análise da estrutura infecciosa de casos gravíssimos.
“Verificamos para ver se algum outro vírus estava coinfectando esse paciente que está debilitado”, afirmou à Agência Fiocruz Thiago Moreno, biólogo que coordenou o estudo.
“A nossa surpresa foi encontrar esses altos níveis de retrovírus endógeno K. É o tipo de pesquisa que parte de uma abordagem completa não enviesada. Isso dá muita força, muita credibilidade ao achado”, disse.
O aumento dos níveis do HERV-K pode ser usado como um medidor da gravidade de casos de covid-19. Segundo Moreno, a detecção precoce dessa amplificação poderia dar o caminho para o desenvolvimento de um tratamento para a doença com o uso de determinados medicamentos anti-inflamatórios.
Vale destacar que trata-se apenas de um primeiro passo para um possível tratamento da covid-19. Por enquanto, não existe um remédio para a doença e as únicas medidas comprovadas para evitar o vírus são distanciamento social, uso de máscara e vacinas.
O que ainda precisa ser esclarecido
Apesar da descoberta ser inédita e importante, serão necessários mais estudos e análises para esclarecer pontos que permanecem uma incógnita para os cientistas.
O principal deles é entender por que o gatilho causado pelo coronavírus acontece em algumas pessoas e em outras não. “Talvez o sinal para o silenciamento de determinados retrovírus endógenos seja mais forte em algumas pessoas do que em outras”, afirmou Moreno, levantando uma hipótese que ainda precisa ser estudada.
Também é necessário entender exatamente qual é o processo envolvido no gatilho causado pela covid-19. Determinar como ele acontece pode ser crucial para o desenvolvimento de um tratamento.
Há também de se analisar se o aumento dos níveis do HERV-K se deu em todas as mortes por covid-19 ou se ocorreu em apenas parte dos casos.
O vírus HERV-K
Não se sabe em que momento da escala evolutiva o vírus HERV-K infectou nossos ancestrais, e nem exatamente quais sintomas ele causava à época.
O HERV-K é um retrovírus endógeno, um microrganismo que insere suas próprias informações genéticas no DNA do hospedeiro, que vai assimilar esse genoma como parte integral de si mesmo.
Retrovírus endógenos são parte da evolução e estão presentes no nosso corpo há milhares de anos. Estima-se que de 5% a 8% do DNA humano seja formado por informações vindas desses organismos.
O HERV-K é o mais ativo dos retrovírus endógenos, mas, ainda assim, se permanecer inativo, não causará nenhum tipo de problema, já que a evolução o assimilou como parte natural do organismo.
A situação se complica quando há a reativação dessas informações, fazendo com que o corpo interprete-as como uma invasão que deve ser combatida.
Doenças como o câncer de próstata e a esclerose múltipla também estão relacionadas com o despertar do HERV-K. Nesses casos, as questões a serem respondidas são as mesmas que se apresentaram na análise da covid-19.
Fonte: Site Nexo Jornal.