Era manhã de quinta-feira, 12 de agosto, quando seis policiais bateram à porta de um abrigo particular para mulheres com transtornos mentais em um bairro de classe média do Crato, no interior do Ceará, e descobriram cenas de um “filme de terror”. A descrição é da delegada da mulher Kamila Brito, que liderava a equipe. Trinta e quatro pacientes estavam trancafiadas em celas minúsculas, sem banheiro, construídas no quintal. Com grades no lugar de portas, os cubículos onde dormiam pareciam jaulas.
Pairava no ar um mau cheiro ―provavelmente dos baldes de plástico nos quais elas deveriam fazer suas necessidades fisiológicas durante a noite ou das tigelas com restos de comida e dos porcos criados do outro lado do muro, segundo contam duas mulheres que as resgataram. Ao menos quatro cães de porte médio circulavam, soltos, pelo local. Todos os dias, às 19h, elas eram trancadas para só serem soltas na manhã seguinte, quando deveriam limpar seus baldes usados como banheiro antes do café. “Fiquei desesperada. Nunca vi algo como aquilo em 12 anos de polícia. Percebi que elas viviam em cárcere privado. Não era uma ou duas vítimas, eram muitas. Estavam enjauladas”, narra a delegada, perplexa.
Já fazia pouco mais de uma semana que Brito puxava o fio desta história. Ela havia recebido em seu gabinete uma mulher que trazia nas mãos uma carta da irmã. Nela, Amanda (nome fictício), de 34 anos, pedia socorro e denunciava o proprietário e diretor da Casa de Acolhimento Feminino Água Viva, Fábio Luna dos Santos, por abuso sexual. “Sou eu e minha amiga. Urgente, me tira daqui. (…) Vem logo, por favor”, clamava a interna no bilhete que conseguiu entregar ao despistá-lo depois de uma consulta médica.
Brito então orientou que a irmã desse uma desculpa qualquer para retirá-la do abrigo e levá-la para ser ouvida na delegacia. “Ela [Amanda] narrava atos libidinosos. Passadelas de mão, masturbação, coisas que realmente caracterizam crime”, justifica a delegada, que confirmou com o psiquiatra que a vítima estava lúcida. O exame de corpo de delito deu negativo para relações sexuais carnais, mas mesmo assim Brito achou que tinha indícios suficientes e conseguiu na Justiça o mandado para prender o diretor preventivamente e investigá-lo.
Quando os policiais chegaram para efetuar a prisão por suspeita de assédio, encontraram mais de 30 mulheres ―entre 30 e 91 anos― encarceradas em cubículos onde só cabia uma cama (muitas delas sem lençol) e uma mesinha de cabeceira. Várias delas choravam e pediam para serem levadas embora, segundo a delegada. Brito acabou efetuando uma “prisão dupla” do diretor ao efetuar o flagrante de cárcere privado e maus-tratos. “Eu me senti em uma cena de terror. Nunca tinha visto aquilo. Era deprimente. Vi mulheres presas, degradadas, outras dormindo como se estivessem dopadas. Como um ser humano é capaz de tratar outro daquela forma?”, questiona a delegada.
A Casa de Acolhimento Feminino Água Viva funcionava há cerca de seis anos. Vendia-se como um abrigo para mulheres em sofrimento mental e estava com alvará válido, concedido há nove meses pela Prefeitura do Crato. Após os policiais detectarem o aprisionamento das mulheres nas celas do quintal, porém, o município suspendeu a autorização de funcionamento e alegou que aquelas estruturas não existiam ou foram omitidas durante a fiscalização feita no ano passado.
Com o abrigo fechado, uma verdadeira força-tarefa foi montada para resgatar as internas e direcioná-las a um lugar seguro naquele mesmo dia. A assistente social Audilene Fernandes, coordenadora do Centro de Referência da Mulher do município, foi uma das primeiras a ir até o lugar. “Era desumano”, descreve. “A gente percebia que algumas estavam dopadas de medicamentos. Pareciam zumbis.” Durante horas, ela contatou familiares e articulou ambulâncias para transportar as pacientes de forma segura, metade delas foi devolvida aos parentes e as demais levadas a um abrigo da cidade vizinha, Juazeiro do Norte, que também precisou montar uma operação especial para conseguir acolher, abruptamente, 17 mulheres já na primeira noite. Hoje, 11 delas ainda permanecem no local ―seja porque os parentes realmente não tinham condições de recebê-las ou porque não tinham família. O EL PAÍS tentou entrevistá-las, mas o pedido foi negado para protegê-las.
Água com farinha no jantar
Nos dias seguintes, as pacientes começaram a dar mais detalhes do que acontecia na Casa de Acolhimento Feminino Água Viva para Fernandes. Uma delas contou que, como a família repassava apenas metade do valor do seu benefício social, às vezes lhe davam apenas água com farinha para jantar. “Ouvi muito isso. Foi doído”, diz a assistente social. É que o abrigo era custeado com os benefícios sociais e a aposentadoria das internas, geralmente no valor de um salário mínimo, e doações da sociedade. Em depoimento à polícia, o diretor Luna dos Santos disse que esta mensalidade poderia variar para menos e que algumas pacientes permaneciam no abrigo gratuitamente. A instituição tinha ao menos quatro funcionários, incluindo a mãe e a namorada do diretor e uma enfermeira que não era da família. Eles disseram à polícia que as mulheres eram acompanhadas regularmente por médicos, informação que a delegada afirma não ter conseguido confirmar. Várias pacientes relataram que costumavam ser levadas ao Centro de Atenção Psicossocial (Caps) da cidade para consultas ―o mesmo equipamento público onde Amanda esteve no dia em que entregou a carta à irmã.
A Polícia Civil do Estado do Ceará concluiu o inquérito que investigava Luna dos Santos pelos crimes de abuso sexual, maus-tratos, apropriação indevida de benefícios das vítimas e cárcere privado no último dia 22 de agosto. Agora, cabe ao Ministério Público analisar os autos e oferecer uma denúncia à Justiça, que decidirá se a acata ou não.
O EL PAÍS procurou ouvir a defesa do diretor do abrigo, mas não obteve retorno. Segundo a delegada Kamila Brito, que tomou seu depoimento, ele nega os crimes sexuais e defende que o local era, sim, apropriado para acolher as mulheres com transtornos psiquiátricos. “Fábio acha que é normal. Disse que elas eram trancadas só à noite como uma forma de resguardo para elas e para as demais. Acha que todas estavam felizes e que sofre uma grande injustiça”, afirma. As redes sociais da Casa de Acolhimento Feminino Água Viva eram fechadas, mas foram abertas após o caso vir à tona “para que a sociedade cratense tenha a oportunidade de conhecer verdadeiramente seu trabalho”. Nas postagens, são exibidas imagens dos alvarás de funcionamento e de ações de beleza para as internas com pintura e corte de cabelo, além de fotos das refeições repletas de pães e frutas.
Um retrato distante do que Fernandes e Brito dizem ter visto naquela manhã e ouvido depois das internas. Segundo elas, quatro pacientes relataram abuso sexual. Algumas mencionaram agressões físicas, com empurrões e até pequenos choques. E mesmo os quartos “normais” da casa principal, onde ficavam algumas mulheres mais idosas, tinham cadeados nas portas. Foi num destes dormitórios que a assistente social encontrou uma idosa com um edema no olho, segundo ela consequência de uma queda. Mas ninguém do abrigo sabia sequer explicar quando aquilo ocorrera. “Uma idosa tinha caído e ninguém fez nada. Ela podia ter tido um traumatismo crânio, que é grave”, critica. Fernandes lembra de outra mulher que perguntou se eles estavam ali para levá-la de volta para casa. Havia ido ficar um mês no abrigo e já tinha passado dois anos. “Era uma pessoa lúcida, aquilo me deixou com o coração partido.”
Na Casa de Acolhimento Feminino Água Viva, as internas podiam receber visitas de familiares, mas elas sempre ocorriam em uma parte da casa principal. “Tem gente que julga os parentes. Como alguém coloca seu familiar num lugar assim? Mas são pessoas muito humildes. Às vezes a família não tem paciência nem condições para cuidar delas, e aí achava que a clínica teria condições”, pondera a delegada. As visitas também haviam sido suspensas durante a pandemia para cumprir os protocolos sanitários. O modelo do abrigo fechado, com a institucionalização da atenção e a exclusão social, é combatido pela luta antimanicomial brasileira. Este é um problema complexo diante da enorme desigualdade brasileira e das carências do Estado para lidar com a atenção psicossocial para transtornos graves e persistentes, especialmente nas faixas populacionais mais pobres.
“O que estamos vendo é fruto da ausência do Estado e de uma rede de atenção psicossocial não consolidada. É uma situação sem precedentes que mostra que estamos com falhas na fiscalização destes locais e no acesso aos serviços”, opina a enfermeira Keila Formiga de Castro, que trabalha no Crato. Ela defende a necessidade de uma política nacional para atender às pessoas em sofrimento mental e critica que, hoje, a demanda fique a cargo de casas terapêuticas da sociedade civil que muitas vezes recebem até verbas públicas, mas não são devidamente monitoradas. “Por trás da cortina, temos clínicas não comprometidas com o bem estar no usuário”, aponta. A assistente social Audilene Fernandes acrescenta que a Prefeitura do Crato reforçou a fiscalização após o caso.
Ela conta que segue acompanhando as 34 mulheres, seja em visitas ao abrigo de Juazeiro ou pelo contato com os familiares e com profissionais de saúde de suas cidades natal, para onde retornaram. A reportagem tentou contato com as vítimas, para ouvir os relatos direto delas, mas os envolvidos em seu acolhimento preferem preservá-las. “Elas agora estão bem, falando fluentemente. Não estão mais zumbis como estavam”, conta. E lembra de uma jovem piauiense que lhe perguntava, quase sem acreditar, se a sua família iria mesmo buscá-la naquela madrugada após o resgate. “Quando eu disse que sim, ela só chorava e agradecia. Vi cenas horríveis, mas hoje quando vejo o sorriso delas, quando as que ficaram aqui pedem um abraço, é gratificante.”
Fonte: Beatriz Jucá – Brasil El País.