Ao final do mês de novembro, o Ministério Público do Trabalho em Mato Grosso do Sul (MPT-MS) concretizou avanço sem precedentes na luta contra o trabalho escravo contemporâneo: a assinatura do Termo de Cooperação Técnica entre instituições públicas e privadas das cadeias produtivas rurais do estado. O objetivo é implementar ações preventivas e educativas que promovam condições dignas de trabalho e erradiquem práticas análogas à escravidão, com foco nas áreas rurais, isoladas no interior do estado. O acordo foi celebrado com a Superintendência Regional do Trabalho (SRTE/MS), a Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul (Famasul), o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar/MS), o Governo do Estado, por meio da Secretaria de Meio Ambiente, Desenvolvimento, Ciência, Tecnologia e Inovação (Semadesc), a Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional MS (OAB-MS) e a Fundação de Trabalho (Funtrab).
Por que a assinatura é um marco?
A iniciativa reflete o compromisso da aliança com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU, em especial o ODS nº 8, que defende trabalho decente e crescimento econômico inclusivo. O Termo prevê o incentivo de boas práticas, a promoção de políticas públicas e o fortalecimento de medidas de fiscalização para identificar e combater irregularidades que possam ser identificadas registradas em propriedades rurais.
De acordo com Cândice Gabriela Arosio, procuradora-chefe do MPT-MS, a atuação coordenada entre o Ministério Público do Trabalho, setor produtivo e todo o sistema de Justiça tem o potencial de combater, de forma mais efetiva, a exploração e essa grave violação de direitos humanos que é o trabalho escravo contemporâneo.
“A iniciativa representa um exemplo claro do MPT resolutivo, que aposta em soluções integradas e preventivas para enfrentar desafios complexos com maior eficiência e alcance. Essa abordagem fortalece não apenas o combate direto às irregularidades, mas também a construção de um ambiente de trabalho mais digno e respeitoso no setor rural”, asseverou.
O procurador do Trabalho Paulo Douglas Almeida de Moraes, coordenador regional da Conaete (Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo), sublinhou a relevância da ação em um estado marcado por atividades agrícolas intensivas.
“Esta parceria representa um compromisso real com a dignidade humana. A escravidão contemporânea é uma realidade que precisamos enfrentar com estratégias integradas e eficazes. Nenhum desenvolvimento econômico é legítimo se for construído às custas da exploração de trabalhadores,” afirmou o procurador.
Condições degradantes: o retrato do trabalho escravo
Nos últimos anos, ações de fiscalização, capitaneadas pela Auditoria-Fiscal do Trabalho e com a participação do MPT, flagraram situações de extrema precariedade em casos isolados no ambiente rural de Mato Grosso do Sul, como alojamentos improvisados, jornadas exaustivas, água imprópria para consumo e ausência de saneamento básico. Nestes flagrantes, trabalhadores viviam um ciclo de exploração, seja por dívidas impostas, falta de alternativas ou desconhecimento das leis trabalhistas.
Essas condições contrariam o Art. 149 do Código Penal Brasileiro, que criminaliza a submissão de pessoas a trabalhos forçados ou degradantes. Além disso, a Constituição Federal prevê a expropriação de propriedades onde o trabalho escravo seja identificado.
A força da cooperação
O Termo de Cooperação não apenas reforça a fiscalização, mas também o compromisso das instituições no âmbito do agronegócio em zelar pelos trabalhadores rurais, com investimento em capacitação e orientação. O Senar/MS, braço educativo da Famasul, desempenhará um papel fundamental junto aos produtores rurais, ajudando-os a implementar práticas de gestão mais humanas e legais.
Lucas Galvan, representante do Senar, destacou a necessidade de informar e conscientizar.“Muitos produtores cometem infrações por desconhecimento. Nossa missão é educar para que o respeito às leis trabalhistas seja um pilar no setor agropecuário,” afirmou.
Por sua vez, a OAB-MS propôs a criação de uma certificação para propriedades que sigam as diretrizes de trabalho decente, incentivando a adoção de boas práticas e o cumprimento das normas.
Parceria
De acordo com o secretário de Estado de Meio Ambiente, Desenvolvimento, Ciência, Tecnologia e Inovação (SEMADESC)) Jaime Verruck, além de atrair investimentos, a SEMADESC conecta esses incentivos com políticas de qualificação profissional, ajudando a preparar a mão de obra local. “Não se trata apenas de exigir medidas sustentáveis das empresas que investem no Estado, mas também da questão social. Ao investir na qualificação dos trabalhadores, a SEMADESC melhora a competitividade do Estado e contribui para a inclusão produtiva de grupos vulneráveis, combatendo as condições que favorecem o trabalho escravo”, esclarece.
A estrutura da SEMADESC abriga a Secretaria Executiva de Qualificação Profissional e Trabalho, criada em 2023, que coordena a COETRAE (Comissão Estadual de Erradicação do Trabalho Escravo). O COETRAE tem como função principal a prevenção, o acompanhamento de casos mais complexos e articulação para um fluxo de atendimento às vítimas de trabalho escravo. A COETRAE-MS também atua no monitoramento e fiscalização de práticas de trabalho escravo, além de desenvolver campanhas de conscientização e programas de assistência às vítimas. Desde 2023, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) tem colaborado com a SEMADESC para fortalecer essa comissão, que conta com uma ampla rede de órgãos e entidades, além do apoio de organizações da sociedade civil que atuam ativamente na prevenção e erradicação do trabalho escravo no estado.
Dessa forma, as políticas de atração de investimentos e qualificação profissional da Semadesc visam garantir que o crescimento econômico em Mato Grosso do Sul ocorra de forma ética e sustentável, sem permitir a exploração da mão de obra. “A atuação integrada entre incentivos fiscais, formalização do emprego e erradicação do trabalho escravo demonstra o compromisso do estado em promover uma economia livre de exploração e abusos laborais”, destaca o titular da Semadesc, Jaime Verruck.
Impactos e próximos passos
A inclusão de empregadores na “lista suja” do trabalho escravo – que restringe acesso a créditos e financiamentos – é uma medida já aplicada no país. Contudo, a assinatura do Termo amplia a atuação preventiva, evitando que situações cheguem a esse ponto.
O superintendente regional do Trabalho, Alexandre Cantero, apontou o impacto social dessa iniciativa:
“Quando erradicamos o trabalho escravo, transformamos realidades. Essa parceria tem o potencial de engajar mais pessoas, especialmente no setor rural, e criar um ciclo virtuoso de desenvolvimento sustentável e justo.”
A próxima etapa será implementar uma agenda comum, com a realização de ações conjuntas, produção de materiais educativos e engajamento das comunidades rurais. O Termo também visa mobilizar outras entidades civis, ampliando a rede de enfrentamento ao problema.
Espera-se, como sublinha o procurador do Trabalho Paulo Douglas Almeida de Moraes, “que além da difusão de boas práticas o termo fomente medidas concretas e ativas no sentido de prevenir o trabalho escravo, como a criação de uma equipe volante de engenheiros e técnicos de segurança para percorrer as propriedades rurais e elaborar um diagnóstico das necessidades de melhorias ambientais trabalhistas, de modo a corrigir preventivamente as possíveis falhas e irregularidades que venham a caracterizar um ambiente do trabalho degradante e, por consequência, que leve ao resgate dos trabalhadores no caso de uma diligência das equipes de fiscalização. Queremos efetivamente prevenir!”
Um compromisso com a dignidade humana
A assinatura do Termo de Cooperação marca um avanço significativo para Mato Grosso do Sul, mas também levanta a reflexão sobre o papel de cada setor na construção de uma sociedade mais justa. A luta contra o trabalho escravo contemporâneo não é apenas uma questão de fiscalização, mas de transformação cultural e econômica. Este acordo é um passo essencial nessa jornada, evidenciando que dignidade e trabalho decente são direitos inegociáveis.