De meados de 2016 a 2022, nos governos Temer e Bolsonaro, o Brasil viveu um raro período em sua história de encolhimento do Estado empresário, com a retomada da privatização, ainda que em marcha lenta, a venda de diversas subsidiárias de estatais e a realização de concessões em série de portos, aeroportos, rodovias e ferrovias.
Em pouco mais de seis anos, o número de estatais, que havia voltado a subir nos primeiros mandatos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e na gestão da ex-presidente Dilma Rousseff, caiu quase pela metade, de 228 para 122, segundo dados oficiais. Com a aprovação da Lei das Estatais, em 2016, que restringiu a nomeação de políticos, dirigentes partidários e sindicalistas para o comando e o conselho de administração das empresas e bancos públicos, houve também uma certa melhoria na gestão e na governança, apesar dos malfeitos e das pressões de Brasília que continuaram a pipocar aqui e ali.
No governo Lula 3, o número de funcionários, as subvenções do Tesouro, o endividamento e o déficit primário das empresas públicas aumentaram, enquanto o lucro líquido e os dividendos diminuíram Foto: Wilton Júnior/Estadão© Fornecido por Estadão
Com a mudança de rumo, mesmo com eventuais percalços pelo caminho, parecia que uma nova era, centrada na iniciativa privada e na economia de mercado, estava se abrindo para o País. Mas, com a o retorno de Lula ao Palácio do Planalto, o novo ciclo foi interrompido abruptamente, antes que seus frutos pudessem ser totalmente colhidos. Passados quase 18 meses do governo Lula 3, o Estado empresário, que havia marcado os governos anteriores do PT, voltou a ganhar força.
“O governo Lula é movido ideologicamente. Não tem a menor preocupação com custos e com o aumento de produtividade, que é uma alavanca importante do desenvolvimento econômico”, afirma o economista Roberto Castello Branco, ex-presidente da Petrobras (2019-2021) e ex-diretor do Banco Central e da Vale, ele próprio pressionado por Bolsonaro para segurar os preços dos combustíveis e depois demitido do cargo por interferência do ex-presidente. “As empresas estatais são muito ineficientes. Veja o caso da Petrobras: em 2021, a Petrobras tinha 33 mil funcionários a menos do que no início de 2015 e estava produzindo mais petróleo do que produzia antes.”
Num artigo escrito em 2018, cujo conteúdo continua atual, Castello Branco resumiu o que para ele está em jogo nesta questão: “É inaceitável manter centenas de bilhões de dólares alocados a empresas estatais em atividades que podem ser desempenhadas pela iniciativa privada, enquanto o Estado não tem dinheiro para cumprir obrigações básicas”.
Para o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI), o fortalecimento das estatais tem o objetivo de aumentar suas contribuições para o crescimento econômico. “O governo federal valoriza as empresas estatais, buscando fortalece-las para que contribuam cada vez mais para o desenvolvimento do País”, diz o MGI, que herdou a Sest (Secretaria de Coordenação e Governança das Empresas Estatais) do extinto Ministério da Economia, por meio de nota enviada à reportagem do Estadão. “Valorização, aliás, que pode ser encontrada nas principais economias do mundo e em órgão multilaterais como o FMI (Fundo Monetário Internacional) e OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) frente a desafios globais como os da transição ecológica e da reindustrialização.”
Embora o número de estatais tenha permanecido quase o mesmo até agora, passando das 122 existentes no fim de 2022 para as 123 em atividade hoje, devido ao “renascimento” da Ceitec, mais conhecida como “a empresa do chip do boi”, que estava em processo de liquidação, as iniciativas estatistas do governo Lula 3 se multiplicam em ritmo acelerado e seus efeitos já começam a aparecer no radar.
Pela primeira vez desde 2015, o número de funcionários das estatais não dependentes do Tesouro voltou a crescer. De janeiro de 2023 a março de 2024 (último dado disponível), quatro mil novos empregados passaram a integrar o quadro de pessoal das empresas e bancos públicos, conforme as informações da Sest, elevando o total de 434 mil para 438 mil – um aumento de 0,9% no efetivo em 15 meses.
Ao mesmo tempo, as subvenções destinadas às estatais dependentes do Tesouro deram um salto de 9% em 2023, bem acima da inflação, para R$ 23,9 bilhões, segundo a Sest. A dívida das empresas do setor produtivo não dependentes do Tesouro, que vinha em queda desde 2020 e havia atingido o menor patamar em dez anos em 2022, também teve um crescimento considerável, de 8,9%, chegando a R$ 319,5 bilhões em setembro do ano passado (dado mais recente disponível).
Em relação ao lucro líquido, os dados consolidados de 2023 ainda não foram divulgados pela Sest. Mas, quando se consideram apenas as cinco principais estatais (Petrobras, Banco do Brasil, BNDES, Caixa e Correios), houve uma queda no lucro líquido de 24% em 2023, para R$ 182,1 bilhões, principalmente em razão da redução de 33% no resultado da Petrobras, de R$ 188,3 bilhões para R$ 124,6 bilhões.
Déficit primário
No caso dos dividendos distribuídos aos acionistas privados e à União pelas sete estatais federais com ações negociadas em Bolsa – Petrobras, Banco do Brasil, Caixa Seguridade, BB Seguridade, Banco da Amazônia, Banco do Nordeste e Telebras – a queda chegou a 42%, de acordo com dados da Elos Ayta Consultoria, passando de R$ 214,2 bilhões em 2022 para R$ 124,4 bilhões em 2023 (veja os gráficos abaixo). “Hoje, os números ainda não refletem totalmente o que está sendo implementado. É o início de um processo. No futuro, vai ficar pior”, afirma Castello Branco.
De acordo com o MGI, a soma do lucro líquido das principais estatais acaba por levar a distorções na análise. “Em 2023, bancos públicos, como o Banco do Brasil e a Caixa, tiveram grande crescimento em seu lucro líquido. A Petrobras, apesar da queda na cotação global do petróleo, bateu recordes de produção e teve o segundo maior lucro de sua história, demonstrando a importância das estatais para a economia brasileira.”
Pelas contas do Banco Central, porém, as estatais federais, excluída a Petrobras, registraram um déficit primário de R$ 656 milhões em 2023 ante um superávit de R$ 4,8 bilhões em 2022. Exceto por 2020, no auge da pandemia, quando houve um rombo de R$ 614 milhões, foi o primeiro resultado negativo desde 2017.
Em seu terceiro mandato, Lula não está apenas seguindo o receituário heterodoxo que marcou a atuação das estatais nas gestões anteriores do PT (leia a segunda parte desta reportagem). Ele também está fazendo o que pode para promover um revogaço de tudo ou quase tudo que foi feito após o impeachment de Dilma, para reduzir a participação do Estado no mundo dos negócios e reforçar a profissionalização da gestão das empresas e bancos públicos.
De certa forma, parece que Lula quer governar como se pudesse dar continuidade ao governo Dilma no exato ponto em que ela o deixou. O presidente “se esquece”, no entanto, de que, na gestão de Dilma, o País enfrentou sua pior recessão em todos os tempos, com queda de acumulada de 7% no PIB (Produto Interno Bruto) em 2015 e 2016, devido, em boa medida, ao fracasso da agenda estatista adotada na época, que ele agora quer retomar.
“São visões diferentes de Brasil”, diz Martha Seillier, ex-diretora-executiva do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) e ex-responsável pela secretaria especial do PPI (Programa de Parcerias de Investimento). “O grande motor da economia, que vai fazer o Brasil crescer, não vai ser o setor público, mas o setor privado, até porque a gente está numa crise fiscal profunda.”
Logo no começo do governo, Lula mandou cancelar todas as privatizações que estavam em andamento no PPI e até concessões que estavam prontas para ser realizadas, como a da Autoridade Portuária de Santos (antiga Codesp), que incluiria obrigações para realização de obras de dragagem, melhoria de acessos viários e ferroviários e construção do túnel Santos-Guarujá.
“A gente não iria privatizar o porto. Iria fazer a concessão para o setor privado da infraestrutura portuária, a um prazo longo, de décadas, e a privatização da estatal que é responsável pela gestão do porto”, afirma Martha. “Eu acompanhava as missões internacionais para conversar com investidores sobre os projetos que estavam mais avançados e via o interesse no mundo todo por um ativo como o Porto de Santos. Aí, o governo afasta o investidor privado e diz que o Estado é que vai fazer o projeto. Vai fazer com que recurso? De onde virá o dinheiro? Esta é a pergunta.”
Nomeações de políticos e correligionários
Além de paralisar as privatizações e algumas concessões na largada, Lula contornou a Lei das Estatais, nomeando políticos e correligionários do PT para a diretoria e o conselho de empresas e bancos públicos, amparado numa liminar concedida em março de 2023 pelo então ministro do STF (Supremo Tribunal Federal), Ricardo Lewandowski, hoje ministro da Justiça e Segurança Pública, em uma ação que questionava a constitucionalidade do dispositivo.
No mês passado, mais de um ano depois, ao julgar o mérito da ação, o STF considerou que a Lei das Estatais está em linha com a Constituição e, portanto, em pleno vigor. Apesar disso, o STF abriu uma exceção e deu seu aval para o presidente manter nos cargos quem foi nomeado antes do julgamento, mesmo que as nomeações estejam em desacordo com a legislação. “As ações do governo passam pelo pleno cumprimento da Lei das Estatais, a permanente fiscalização dos órgãos de controle e a consolidação dos mecanismos internos de governança de cada empresa” diz o MGI na nota enviada à reportagem.
Em outra iniciativa de judicialização das medidas adotadas nos últimos anos para conter o avanço do Estado empresário, Lula entrou com uma ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) no STF, por meio da AGU (Advocacia-Geral da União), com o objetivo de retomar o comando da Eletrobras, privatizada em 2022. Sua alegação é de que o modelo de corporation adotado na privatização, que limitou o direito de voto dos acionistas a no máximo 10% do capital, independentemente das participações acionárias de cada um, é lesivo à União, que ainda detém cerca de 42% das ações.
Em dezembro de 2023, o ministro Kassio Nunes Marques, relator da ADI no STF, determinou que a controvérsia seja resolvida por meio de acordo entre as partes e concedeu um prazo de 90 dias para que isso ocorresse. No início de abril, no entanto, como as partes ainda não haviam chegado a um acerto, ele prorrogou o prazo por mais 90 dias. A questão é que os interesses parecem inconciliáveis, já que o governo quer reassumir o comando, passando por cima da decisão do Congresso que estabeleceu as regras de privatização da companhia e dos acionistas privados que hoje respondem pela sua gestão.
Lula também tentou alterar o novo marco do saneamento, aprovado em 2020, que tornou mais atraentes para a iniciativa privada os investimentos no setor e estabeleceu metas de universalização do serviço até 2033. Seu plano, que visava liberar as empresas estaduais de saneamento para realizar a renovação de contratos sem licitação, só não foi adiante porque o Congresso resistiu à mudança, obrigando o governo a buscar uma saída negociada, sem alterar a essência do dispositivo aprovado pelo Legislativo, de ampliar a concorrência na área, para melhorar o atendimento à população.
Mantega na Vale
Hoje, nem empresas privadas, como a Vale, privatizada em 1997, estão a salvo do apetite estatista de Lula. No começo do ano, ele tentou aproveitar a troca de comando na mineradora para emplacar o ex-ministro da Fazenda Guido Mantega como seu presidente. E só não conseguiu porque, apesar de a Previ (fundo de previdência dos funcionários do Banco do Brasil) ser o maior acionista da Vale, com uma participação de 8,7% no capital e dois representantes no conselho de administração, seus votos não são suficientes para impor aos demais integrantes do órgão a vontade de Lula, que tem laços antigos com os dirigentes da entidade.
Provavelmente, se o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) não tivesse vendido na gestão de Gustavo Montezano a fatia de 6,1% que detinha na Vale, reduzindo o poder de pressão do governo sobre o conselho, Mantega a esta altura estaria ocupando a sala do presidente da companhia. Foi a venda das ações da Vale pelo BNDES, hoje criticada pelo presidente da instituição, Aloizio Mercadante, que acabou por blindar a empresa contra incursões indesejadas de Brasília.
“A Vale não pode pensar que ela é dona do Brasil, não pode pensar que ela pode mais do que o Brasil”, afirmou Lula, depois de tomar conhecimento de que o conselho não aprovaria o nome de Mantega. “As empresas brasileiras precisam estar de acordo com aquilo que é o pensamento de desenvolvimento do governo brasileiro. É isso que nós queremos”, acrescentou, sem constrangimento, como se os empresários do País não tivessem a liberdade de definir o destino dos negócios que controlam, dentro das regras de mercado.
Estadão Conteúdo.