Mais do que plantar e colher, a terra para os povos originários do Brasil é um espaço sagrado – de cultura, identidade, pertencimento e religião. É ela que fornece o barro, por exemplo, uma matéria-prima que por séculos tem permitido às mulheres indígenas confeccionar arte, utensílios domésticos e, na sociedade atual, gerar renda a partir das mãos hábeis que sabem criar peças apreciadas no Brasil e no exterior.
É em torno desse saber feminino, indígena e ancestral, que transforma barro em arte que um grupo de mulheres das etnias Kadiwéu e Terena de Mato Grosso do Sul viajaram, na última semana, entre 4 e 8 de outubro, até Roraima para participar de um intercâmbio com indígenas Macuxi, do Território Raposa Serra do Sol. Um encontro geracional que reuniu crianças e idosos em torno da cultura ancestral.
O grupo foi formado por cinco artesãs. Quatro indígenas do Território Indígena (TI) Kadiwéu, município de Porto Murtinho, são elas: Zilda da Silva, da aldeia São João; Jussara Derriune, da Barro Preto, Creuza Virgílio e Marilene, ambas da aldeia Alves de Barros. Enquanto a quinta integrante, Selma Polidório, é da aldeia Cachoeirinha, etnia Terena, da cidade de Miranda.
Intercâmbio – Das cinco artistas, duas delas, Zilda e Marilene, vivenciaram pela primeira vez a experiência de viajar de avião. Mas as maiores experiências estiveram concentradas no “Encontro Ancestral – barro, uma linguagem da Terra”.
“Aprendi muitas coisas no meio das mulheres, mexendo no barro porque há diferença do barro nosso, do jeito que a gente trabalha com ele. Vou sair daqui levando novos conhecimentos para serem repassados dentro das nossas aldeias”, contou Zilda.
Os destaques do encontro ficaram por conta da exposição de artesanato e das panelas de barro Macuxi, famosas em todo mundo pela beleza e durabilidade. As oficinas Kadiwéu e Terena, dedicadas para apresentar as riquezas da cerâmica indígena do Pantanal sul-mato-grossense também foram pontos altos do evento.
Para as artesãs que fazem parte da Associação das Mulheres Artistas Kadiwéu (Amak), um dos principais objetivos do intercâmbio foi entender o processo que garante a resistência das panelas de barro elaboradas pelas indígenas Macuxis. Atualmente, um dos desafios das ceramistas Kadiwéu está no transporte das peças até os grandes centros. A longa jornada e a qualidade das estradas podem comprometer o estado dessas peças até o destino final.
“Na minha arte, eu já faço bonecas de cerâmica e, aqui, aprendi técnicas para fazer a cabeça de bonecas de barro. Já fiz uma mulher Kadiwéu, aqui, a partir do uso da técnica e quando chegar na aldeia quero continuar aprimorando essa técnica”, explica a presidente da Amak, Creuza Virgílio, que aprendeu a ser ceramista com a mãe quando tinha apenas 15 anos de idade.
Em todas as atividades elas foram acompanhadas por Lilian Pereira, coordenadora de assuntos indígenas e comunidades tradicionais do Programa Corredor Azul, da Wetlands International Brasil. “O que aconteceu aqui foi fruto de uma parceria. Recebemos o convite para o intercâmbio do Reinaldo Lourival, do Projeto Bem Viver, e do indígena Enoque Macuxi que, em junho deste ano esteve conosco no TI Kadiwéu. Agora, a meta é que essas mulheres sejam multiplicadoras do conteúdo deste encontro”, frisou ela encantada ao ver a relação das indígenas com o barro, “É lindo de ver o respeito e a ligação feminina que há aqui, elas chamam de ‘vovó barro’, tratada como uma entidade viva e sagrada”.
A ideia é que a partir dessa vivência de cinco dias, o grupo feminino não só amplie sua rede de diálogo com as parentes indígenas, como sejam multiplicadores de conhecimento. Um modo de fortalecer o valor cultural e de mercado da cerâmica Kadiwéu e Terena, com foco em atingir nichos turísticos voltados às artes.
“Gostei muito das panelas, o tamanho e o acabamento me chamaram a atenção. Outra coisa interessante é a argila que elas trabalham que é mais macia que a nossa. Saio daqui pensando em tudo que aprendi e que pode ser colocado em prática na aldeia”, avaliou Selma.
Agenda – O Encontro Ancestral fez parte do Festival das Panelas de Barro Macuxi, realizado no TI Raposa Serra do Sol, município de Normandia (RR). A arte das panelas de barro é datada de 1870 na comunidade e reúne tradição, identidade e cultura.
Apesar de parecer uma fabricação simples, o trabalho tem um toque místico. É que mulheres grávidas ou período menstrual, não podem fazer panelas, assim como não é permitida a participação de meninas de 12 anos de idade. Isso porque acredita-se que elas possam ficam doentes, assim como prejudicar a qualidade do artesanato.
Durante o evento, o público também foi convidado a assistir alguns ritos Macuxi, como danças e cantos, ritual de pimenta nos olhos com a finalidade de afastar energias ruins, pinturas corporais, entre outras tradições.
O intercâmbio entre os povos originários foi uma realização do Conselho Indígena de Roraima (CIR) através do Projeto Bem Viver, com apoio da Wetlands International Brasil, Instituto Terra Brasilis, Universidade Federal de Roraima (UFRR), Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), Nature e Culture International, USAID – Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional e o Sebrae/RR.