Poderia ser a Faculdade de Coimbra (Portugal) com as aulas ao estilo masterclass da multiartista Adriana Calcanhotto, mas, dessa vez foi o Teatro Glauce Rocha, em terras sul-mato-grossenses que se tornou palco de partilha de conhecimento com o público interessado em discutir literatura, música e acessibilidade ao que há de melhor em termos de cultura da língua portuguesa. O ambiente foi criado graças à 35ª Noite da Poesia realizada, na segunda-feira (9), em Campo Grande.
Assim que pisou no palco, Calcanhotto foi ovacionada pelo público que a aguardava ansiosamente. E, ao longo do evento, sentada em uma poltrona, destacou seu interesse por participar de momentos como esse. “Falar de poesia é um assunto que me interessa, por isso tenho cada vez mais aceitado eventos desse tipo. É importante que haja cultura, fomento a arte, Tem que ter política públicas, esses encontros e os prêmios são fundamentais, a gente está aqui fazendo isso que é parte desse processo”.Com seu notebook e fazendo uso de um telão, ela compartilhou um rico material poético que trazia um pouco de tudo aquilo que, desde a poesia dos livros até as músicas nas ondas de rádio AM, encantou a criança Adriana, que anos mais tarde viria a ser a artista que conhecemos hoje. Profissional essa que deve muito a toda essa trajetória feita desde a tenra idade.
Partimpim – poesia desde cedo
Aliás, por falar em infância, Adriana confidenciou curiosidades de viver em um lar de artistas: pai baterista de banda de jazz e mãe bailarina, em paralelo, as influências da tia professora e do contato espontâneo com a MPB.
“Eu, como muitas pessoas no Brasil, descobri a poesia, comecei a fruir a poesia antes mesmo de ter, de entender o que viesse a ser a poesia. Com meus pais ouvia música instrumental em decorrência da profissão deles, mas, foi com as babás, em casa, ouvindo poesia na rádio, antes de ler poesia de livro, vamos dizer. Descobri Fernando Pessoa através da voz de Maria Bethânia”, conta ela que lembrou também da sua descoberta com livros infantis que não necessariamente tinham uma linguagem infantil. “Nessa fase eu lia prosa e o livro que mudou a minha vida foi ‘A mulher que matou os peixes’ [Clarice Lispector], obra apresentada pela minha tia Estelita e isso marcou minha vida para sempre”.
Picada pela forma de escrita sincera de Lispector com as crianças, partia daí, décadas mais tarde, o heterônimo Adriana Partimpim, com discos e livros direcionados aos pequenos longe dos estereótipos. “Quando a gente aprende um poema na infância, aprende muito cedo, a gente não esquece. Então, acho que quanto antes começar, melhor. Então, essa era a ideia de fazer”.
Tamanha entrega levou a dois álbum e um livro de Partimpim, que rendeu, na música, o Grammy na categoria Melhor Álbum Infantil. Se Partimpim pode voltar a dialogar com os “miúdos”, ou seja, trazer novas produções, Adriana versa que “volta e meia, ela dá umas piscadas para mim. Vamos ver o que é possível”.
Poesia em tudo
Seja na literatura ou na música, quanto se trata na expertise de encontrar poesia em todas as coisas, ela não deixou de falar de nomes como Oswald de Andrade, Carlos Drummond, Antônio Cícero, Vinicius de Moraes, Gilberto Gil e até mesmo o nosso consagrado Manoel de Barros, conhecido pela sua forma singular de ter conseguido manter viva sua criança interior.
“Manoel tem uma coisa única que a gente lê e sabe que é ele. Uma espontaneidade calculada, mas, que funciona como espontaneidade que é só dele. Algo que a gente perde quando cresce e que ele consegue manter, porque ficar adulto estraga tudo. Então, é admirável isso em Manoel”.
Aos amantes da poesia que buscam aprimorar sua escrita, Calcanhotto acredita que “para escrever poesia tem que ler poesia. A coisa mais interessante, na verdade, que é o que diz Vinícius de Moraes para a gente, diz não, não só diz como fez, que é viver poesia, que é diferente de somente escrever poesia, porque a poesia nem sempre, como dizia o Oswald de Andrade, a poesia não está só nos versos, está no beija-flor, no elevador. Então, na verdade, é manter as sensibilidades abertas, deixar que a poesia cobre de nós o máximo das nossas sensibilidades”.
E, embora haja poucos leitores de poesia a nível mundial, ela lembra algo importante e característico do nosso país e que merece ser mais valorizado. “Os escritores de poesia dizem que os leitores de poesia são mil e quatrocentos, isso em todos os tempos, somos poucos. E, no Brasil, embora a gente, talvez, não leia tantos livros de poesia, a gente frui ela através da música. Tem poesia tocando lá no radinho, no interior do Tocantins, alta poesia. Têm Ferreira Gullar, Vinicius, Caetano, somos muito privilegiados e, às vezes, a gente banaliza dizendo que temos ‘gerações de Gils’, não é assim. Temos que ficar antenados com o lance do Oswald de Andrade que dizia ‘a poesia está onde estiver, cabe a nós reconhecer’.
Noite de premiações
Além do encontro mega especial com a artista, a programação contou ainda com premiações de poesias em duas categorias (nacional e regional). A curadoria encarou o desafio de avaliar 1.112 poemas inscritos que resultaram na seleção das 10 melhores poesias de cada categoria, sendo os três primeiros de cada agraciados com prêmios de até R$ 5 mil.
Dessa seleção, o primeiro lugar no pódio poético ficou com a poesia ‘O Tênis dançando a maneira do equilibrista’, Marina Alexiou, na categoria nacional e a poesia “Ainda sobre o Litoral Central”, de Volmir Cardoso, na categoria regional.
Realizado há 35 anos, a Noite da Poesia que já trouxe nomes consagrados como Ariano Suassuna, Viviane Mosé, Rubem Alves, Marina Colasanti, Martha Medeiros, já pode ser considerado um patrimônio de Campo Grande como explica Lucilene Machado, presidente da União Brasileira de Escritores de MS (UBE).
“Em se tratando de evento cultural, este é um dos eventos mais antigos e tradicionais de nossa Capital. Chegar até aqui não é um caminho fácil, uma trajetória árdua e cheia de desafios e superações, mas, um evento que sem sombra de dúvida vale a pena e tem sua relevância cultural por valorizar poetas do Estado, do Brasil e viabilizar ao público um momento único com profissionais, artistas, que colocam a língua portuguesa em outro patamar como é o caso de Adriana Calcanhotto”.
A 35ª Noite da Poesia foi uma realização da UBE e da Prefeitura Municipal de Campo Grande, via Sectur -Secretaria Municipal de Cultura e Turismo de Campo Grande, com o apoio da MKT Produções.
Vambora
Aos que saíram encantados com a noite junto da artista ou para aqueles que queriam ter comparecido ao evento e não puderam, há nova oportunidade de estarem próximos de Adriana. É que a artista volta a Mato Grosso do Sul e dessa vez para cantar. Será no final de outubro, dia 28, com sua turnê internacional “Errante” – com músicas novas e clássicos de sua carreira. O show será no Bosque Expo, do Shopping Bosque dos Ipês. Os ingressos estão disponíveis no site.