Por: Henri Zylberstajn, empresário e fundador do Instituto Serendipidade, organização sem fins lucrativos que acolhe pessoas com deficiência e seus familiares
Tempos atrás escutei de alguém na internet que, ao contrário do que muitos pensam, empatia não é “se colocar no lugar do outro”. Segundo a pessoa que falou – que infelizmente não lembro o nome para dar os devidos créditos – o significado da palavra empatia é, na verdade, “aceitar que o outro existe”. Achei simplesmente genial e passei a refletir sobre as minhas atitudes empáticas antes desta nova definição.
O substantivo empatia é um velho conhecido da língua portuguesa, mas sua frequência de uso foi consideravelmente ampliada durante a pandemia da Covid-19. O volume de buscas no Google pelo termo no Brasil em 2020 foi 6 vezes maior do que em anos anteriores. Certamente a situação delicada em que todos nos encontrávamos – uns mais do que outros – despertou um desejo coletivo de apoio, compaixão e compreensão, fazendo com que esta palavra passasse a figurar em buscas, textos e posts – e até em códigos de conduta de marcas e empresas no mundo todo. Que bom!
Durante minhas reflexões, não foi difícil concluir que a jornada pela luta dos direitos das Pessoas com deficiência precisa, necessariamente, partir de um exercício da empatia. O mundo em que vivemos não foi feito e nem está preparado para incluir todos – principalmente os que não conseguem se adequar aos padrões por ele impostos. Portanto, ter um olhar para o próximo – em especial aos “diferentes” – é fundamental para a compreensão desta realidade – e para começar a mudá-la. Mas quantas pessoas, empresas, entidades governamentais e do 3º setor ainda encaram a empatia como “o ato de se colocar no lugar do outro”? E mais: quais são as implicações de fazê-lo desta maneira?
Acredito que a maioria de nós ainda entende que empatia é apenas “colocar-se no lugar do outro”. E digo “apenas” pois entendo ser o mínimo que pessoas que queiram transformar o mundo num lugar que não deixa ninguém para trás devam fazer para tanto. A sociedade múltipla e diversa em que vivemos impera isto – ou pelo menos deveria. Mas, para uma mudança efetiva, representativa e estrutural, é preciso ir além: quando simplesmente “nos colocamos no lugar do outro”, levamos conosco, ainda que involuntariamente, todos os nossos vieses e pré-conceitos: tudo aquilo que estabelecemos como referenciais e verdades sem conhecer todas as possibilidades. Já quando “aceitamos que o outro existe”, aumentamos significativamente nossa capacidade de identificação com o próximo, admitindo que há outras formas de ser, viver e existir além daquela que enxergamos como reflexo da bolha em que vivemos. E reconhecer a diversidade é a 1ª etapa para que a inclusão aconteça. Sem aceitá-la é impossível incluir. E para incluir é necessário desconstruir conceitos moldados sem aceitarmos que o outro existe.
Arrisco-me a dizer que muitas das iniciativas que o Instituto Serendipidade (entidade que fundei com minha esposa Marina com o propósito de transformar a sociedade através da inclusão) desenvolveu nos últimos 5 anos interpretaram a empatia a partir da ótica simplista de nos colocarmos no lugar do outro. Não estou reclamando: com o apoio de muita gente, criamos uma organização que tem a missão de ajudar a construir uma sociedade que atribua o mesmo valor a todos os seus indivíduos, independente de suas características – e que já impactou mais de 1 milhão de Pessoas (mais informações aqui). Naturalizar a existência, dar voz e oportunidades às Pessoas com deficiência, colocando-as numa posição de muito protagonismo quando o tema é inclusão sempre foram conceitos que nortearam nossas atividades. Mas a reflexão é: qual teria sido o impacto das nossas ações se tivéssemos usado o conceito de “aceitar que o outro existe” desde sempre? Será que percorremos esta jornada carregando de alguma forma nossos vieses e pré-conceitos?
Uma das principais frentes do Serendipidade é criar pontes com a iniciativa privada. Ajudar empresas não apenas a se conectarem com as Pessoas com deficiência, mas (e principalmente) fazerem isto com convicção – e não por constrangimento, pena ou obrigação. Auxiliar organizações a enxergarem a diversidade como potência e os benefícios que um ambiente onde todos jogam – e consequentemente todos ganham – é uma das nossas premissas. Iniciativas de sensibilização, educação, empregabilidade, acessibilidade e voluntariado (apenas para citar algumas) ligadas à inclusão em empresas como Reserva, Disney, Citibank, JP Morgan, Espaço Laser, Westwing, Machado Meyer, Mattos Filho, Iconic, etc fazem parte do dia-dia do Instituto. Mas recentemente o resultado de uma Collab com um dos nossos principais parceiros me chamou muito a atenção.
A Life, empresa do Grupo Vivara – a maior rede de joalherias do país é, orgulhosamente, parceira do Serendipidade praticamente desde que começamos. Eu amo intensamente todos os nossos apoiadores, mas aqueles que apostaram em nós quando ainda éramos muito mais um sonho do que uma realidade, têm um lugar especial no meu coração – e é o caso da Life. Em 2019 lançamos nosso 1º produto social em conjunto: uma linha de berloques e pulseiras que homenageava a síndrome de Down e o Autismo (link aqui), convidando Pessoas com estas condições para estrelarem a campanha de lançamento.
O sucesso foi tamanho que a marca nos procurou para construirmos uma segunda edição. Os quase 2 anos de pandemia atrasaram os planos, mas finalmente no final de 2022 começamos a estruturar a nova iniciativa. Queríamos algo mais potente e inovador – e antes de pensarmos no “o que faríamos”, começamos a pensar no “porquê” faríamos – assim como Simon Sinek nos ensina em seu incrível livro Comece pelo Porquê (link).
E iniciar pelo porquê nos remeteu a pensar nos respectivos propósitos da Vivara e do Serendipidade. Ao dar um Google na palavra Vivara ou ao receber um email de qualquer um dos seus quase 5 mil colaboradores, encontramos nas respectivas assinaturas o propósito da empresa: “Tornar cada história única e especial” – que é exatamente o que nós do Serendipidade buscamos: fazer o mundo entender que ninguém é igual a ninguém, cada um de nós é diferente – e que é exatamente esta unicidade que torna nossa existência única e especial. Quando nos demos conta de que nossos propósitos (os “porquês”) eram os mesmos, ficou muito mais fácil desenvolver um “o que” que nos aproximasse deles. E é aqui que entra a nova definição de empatia que aprendi há alguns meses.
Como a vontade de realizar algo mais profundo, pensamos em ampliar os tipos de deficiência retratados pela Collab, aumentando sua diversidade e dando ainda mais protagonismo a seus representantes. Para tanto, juntamos um grupo de voluntários bastante diverso com mais de 40 pessoas que tinham, deste suas inúmeras características, alguma destas condições: Deficiência Intelectual, Transtorno do Espectro Autista, Doenças Raras, Paralisia Cerebral, Deficiência Auditiva, Deficiência Visual, Mobilidade Reduzida e Nanismo – e fizemos a seguinte pergunta: “Como cada um de vocês gostaria de ver a sua condição representada nos produtos”?
O compromisso estabelecido com a Life era o de respeitar 100% do resultado do processo e desenvolver peças que, de fato, representassem as vontades dos membros dos grupos – que posteriormente teriam a prerrogativa de aprovar ou não os protótipos, até que se dessem por satisfeitos.
Isto é ter um olhar empático, não? Afinal de contas, estamos “nos colocando no lugar do outro”, certo? Mas pensem bem: se nos “colocamos no lugar” de uma pessoa que faz uso de uma cadeira de rodas para se locomover, como será que imaginaríamos que o pingente que a representa deveria ser? Talvez uma cadeira de rodas? E no lugar de um Autista? Talvez aquela fitinha com o quebra-cabeças? E de uma pessoa com Nanismo? Talvez alguém de baixa estatura? Não sei vocês, mas foram estas as formas que eu imaginei para os produtos quando “me coloquei no lugar” de cada membro dos grupos representados (o que já daria um resultado maravilhoso).
Entretanto, o riquíssimo trabalho com a Vivara acolheu naturalmente a nova definição de empatia: ao invés de “apenas nos colocarmos no lugar dos outros”, assumimos de verdade que “os outros existem”, deixando pré-conceitos de lado e recheando o processo criativo com representatividade. Cada pessoas com deficiência de cada grupo se expressa por si, da forma como quiser. Ou seja, mais do que o espaço de fala com maior legitimidade, há o respeito do resultado. E ele foi absolutamente encantador: ao invés de uma cadeira de rodas para representar os cadeirantes (e importante: nada contra esta representação, hein?), o grupo de mobilidade reduzida escolheu um pássaro. Segundo eles, é assim que muitos deles se enxergam e desejam que a sociedade os encare: potentes, com autonomia e liberdade para voarem e fazerem tudo aquilo que querem e podem. O grupo das doenças raras desenvolveu um pingente de coração listrado inspirado nas zebras, pois suas linhas são como impressões digitais: únicas, que nunca se repetem. A turma da deficiência intelectual e TEA desenhou um pingente em forma de olho para representar um jeito único de enxergar o mundo. Já o da paralisia cerebral escolheu a ampulheta como símbolo de respeito ao tempo de cada um. E assim por diante. Isto é o que eu chamo de “inclusão como estratégia de inovação”. Estão todas e todos convidados a conhecer a coleção, que ficou espetacular e tem boa parte das vendas direcionadas ao Instituto Serendipidade (link aqui).
Durante 38 anos da minha vida achei que a única forma de vive-la era a que eu encontrava ao me olhar no espelho. Quando recebi a notícia em 2018 do diagnóstico da síndrome de Down do meu filho caçula (conto mais aqui), um dia depois dele nascer, veio junto com ela uma agulha que furou a redoma que me impedia de enxergar o mundo de forma ampla e plural – ou seja, do jeito que ele realmente é. Durante quase 4 décadas eu, infelizmente, não tive a oportunidade de conviver pra valer com pessoas diferentes de mim. Até então, por exemplo, quando eu encontrava alguém com deficiência na rua, pensava comigo mesmo: “Ele é diferente de mim”. E a chegada do Pedro com a Trissomia do Cromossomo 21 me ensinou que, numa situação como esta, não é que “ele é diferente de mim”, mas sim “nós somos diferentes um do outro”. Um ótimo exemplo da aplicação prática da interpretação sobre empatia que aprendi recentemente.
Concluo convidando vocês a apreciarem a força da diversidade. Percebam a riqueza de criar um ambiente que escuta, acolhe e respeita individualidades. Entendam que inclusão não é favor, inclusão é oportunidade – como os voluntários da Collab nos ensinaram. E por fim, reflitam se o conceito de empatia não deveria passar a ser enxergado e praticado como algum destes gurus da internet nos ensinou. Às vezes eles, inclusive alguns articulistas (rss!), dão bons conselhos!